Carinhosamente apelidado entre os seus colegas do colectivo Tágide de “mais velho novo autor da BD portuguesa,” Mário André, autor-editor do selo Kustom Rats, irá lançar-se como autor de novela gráfica este ano, após testar a sua criatividade narrativa em diversos fanzines. Reconhecido pelo seu percurso como enfermeiro da Selecção Nacional de Futebol e também no Sporting Club de Portugal, o Mário retomou a paixão pela BD na sua 3ª idade, demonstrando um ímpeto criativo invejável e uma sólida missão interventiva. Nesta primeira entrevista no blog Tágide, vamos procurar conhecer melhor o autor e o seu novo projecto.
Tágide:
Mário, o que te motivou a dedicar a tua aposentação a um modo
artístico como a Banda Desenhada, tão afastado da tua antiga
profissão?
Mário
André: O meu gosto pela BD surge em sequência de viver perto de
alguém que era uma coleccionadora compulsiva de BD. Por volta dos
anos 60/70, tinha acesso a todas as edições de banda desenhada
distribuídas pela Agência Portuguesa de Revistas. Pautavam-se, na
altura, títulos como o Mundo de Aventuras, Cavaleiro
Andante, Condor, Falcão e tantas outras. Era fácil
para mim levar para casa uma “braçada” de revistas, que devorava
rapidamente, voltando à carga logo de seguida. Juntando a isto o
gosto pelo desenho e algum “jeito,” que me vinha de meu pai, isto
foi deixando em mim o “bichinho.”
O
Curso de Enfermagem virou o meu foco e a opção pelo exercício da
profissão no contexto do Desporto ainda complicou mais as coisas.
Era um tempo de total dedicação física e mental, não havendo
espaço para outros interesses. Mas o gosto estava lá.
Veio
a aposentação, e o tempo agora sobrava, mas faltavam os saberes,
os suportes técnicos. É aqui que surgem as formações na Nexarte,
através de Pedro Moura, no Museu Bordalo Pinheiro, através de Penim
Loureiro, e na Câmara Municipal do Montijo, com o 1º curso
Iniciação à Arte Sequencial, coordenado pela Susana Resende. A
partir daí deu-se o início a mais uma aventura: ouvir críticas,
receber conselhos, enfim, procurar melhorar. Era o início da minha
terapêutica ocupacional na aposentação.
T:
O que mais te atrai e desagrada na banda desenhada?
MA:
Atrai-me a possibilidade de criar algo que tenha vida e não
somente letras. Algo que se pareça com cenas vivas e que leve as
pessoas a pensar e a compreender os conteúdos de uma forma dinâmica,
em que o uso da imagem surge como um factor facilitador e de atracção
para essa compreensão. Exaspera-me que a Nona Arte seja considerada
uma área menor no contexto das Artes, e especificamente da
Literatura. Desencanta-me que artistas de grande qualidade não
consigam viver da sua produção, estando somente esse lugar
reservado a uma minoria (ainda bem, apesar de tudo). Exaspera-me que
nos programas escolares pouca ou nenhuma importância se dê à BD e
ao seu papel no processo de aprendizagem, não só na sua área
específica mas na transversalidade que a mesma pode proporcionar.
As
coisas irão melhorar. Cada vez surgem mais autores e obras de melhor
qualidade. O futuro parece não meter medo mas a evolução é muito
lenta.
T:
Para além de teres frequentado formações e criado trabalhos curtos
em BD, também optaste pelo percurso de editor independente; porquê?
MA:
Em relação à edição de fanzines, foi o corolário lógico de
quem vai criando coisas que, contendo uma mensagem, seria uma pena
não ser transmitida (na minha perspectiva). Daí até à edição do
Doce Êmese Canibal, o primeiro dos fanzines que publiquei,
foi um passo. Mas foi também um grito de Liberdade!… Liberdade de
expressão e de pensamento na sua forma mais pura. Foi a
materialização daquilo porque tinha lutado sempre. Nesse sentido,
também acho importante que os programas escolares devam incluir a
criação de fanzines de múltiplas temáticas. Seria um
extraordinário estímulo à aprendizagem dos jovens, incluindo a da
própria cidadania.
T:
À ocupação de autor/editor independente, também te aventuras em
concursos. São um factor de motivação?
MA:
No começo foram os
fanzines, mas logo de seguida vieram os concursos e o primeiro foi o
de Lausanne. Ao participar em concursos, os resultados foram sempre
questões secundárias, mas funcionaram sempre como um desafio com
metas claras: o tema, os prazos, o número de pranchas, etc. Foi isso
que me ajudou a disciplinar a criação e a manter a sua
continuidade. Foi uma experiência muito importante, nas qual gosto
participar sempre que possível, tendo sido recompensado com duas menções honrosas até agora.
T: Depois desta introdução na comunidade de BD, desafiaste-te a criar uma novela gráfica. Porquê escolheres este tema, da banda desenhada de intervenção (política)?
MA: Entendo que toda a produção literária não deve ser uma coisa inócua. Não deve ser “conversa mole.” Tem de transmitir algo, tem de transmitir valores, tem de ser uma mais-valia. Todos os temas são possíveis, desde o amor à política, do mais onírico ao mais real, e até a própria arte com que o autor construiu o seu livro. No meu caso, optei pela intervenção política, fruto das minhas vivências culturais e pessoais. O Estado Novo marcou a minha família e a mim, atropelou as Liberdades de todos nós; tempos de miséria, exploração, ditadura, que nos deixou as suas marcas. Entendo que transmitir a mensagem para que vivamos num mundo mais livre e mais puro, com relações de maior respeito entre as pessoas, é um dever e uma obrigação. Foi este o caminho que escolhi.
Antes de 1974, pintava paredes e lançava panfletos. Hoje, pinto papel e lanço fanzines!... Não falo ainda em lançar livros, mas espero lá chegar.
T: Porque motivo te interessou em específico adaptar este ensaio, “A Implosão!”, de Nuno Júdice?
MA: O primeiro contacto com o livro foi a atracção pela capa, depois o autor – um poeta dos mais importantes no nosso país, reconhecido internacionalmente – e, finalmente, numa breve leitura ao seu conteúdo, constatei que a narrativa de Nuno Júdice reflectia a sua angústia pela situação que se vivia então no nosso país. E eu partilhava as mesmas interrogações.
A leitura do livro foi feita de uma só vez e nele encontrei vivências que me eram próximas. Era linguagem de quem viveu lutas anteriores e com quem me identificava. Transmiti isso mesmo ao autor. Até parecia que eu fazia parte daquele mundo...
A concordância de Nuno Júdice nesta adaptação, as sua opiniões, as correcções, os seus incentivos, a sua visão de quais os caminhos que o livro poderia percorrer, levaram-me a acreditar ser possível e importante terminar o projecto. Comecei a imaginar o desenrolar da acção, vinheta a vinheta, imaginei cenários e planos, e o respeito sagrado pelos diálogos muitas vezes demasiado compridos para uma normal página de BD mas impossíveis de alterar ou suprimir.
T: Como foi a experiência de produzir uma novela gráfica, após criares apenas BDs curtas?
MA: Parece algo difícil mas para mim foi fácil, talvez pela minha identificação com o tema. E assim foi, prancha a prancha, até ao desfecho final. Uma novela gráfica no meio de BDs curtas… Não foi uma opção deliberada foi antes a consequência de algo que me surgiu e que comigo se identificava profundamente, e que entendi que poderia dar o caminho de novela gráfica e com isso a possibilidade de chegar a outros leitores, quiçá mais novos, a quem a mensagem contida seria importante para uma maior consciência do que os rodeia em termos históricos e políticos.
E vou-me repetir: foi para mim muito importante sentir-me personagem daquela narrativa. Tudo o resto fluiu naturalmente.
T: Quais são os teus planos para a publicação da obra?
MA: Na minha perspectiva, seria uma pena que o projecto ficasse na gaveta, mas também reconheço que para a sua edição as exigências serão muitas e eu talvez não tenha atingido esses patamares. Mas aqui, o apoio da Susana Resende e do Daniel Maia têm sido inexcedível. Eles têm contribuído activamente para que o projecto venha a ter a sua publicação. Não sei como lhes agradecer.
Será possivelmente uma auto-edição. O meu desconhecimento do trabalho com a tecnologia digital é um obstáculo à qualidade do mesmo e aqui os colegas do colectivo Tágide serão o segredo que me ajudará a ultrapassar estes escolhos. Durante o 2º semestre e possivelmente aproveitando os festivais de BD que se venham a realizar, o livro irá ser apresentado. Aguardo ansiosamente por essa data!
T: Pretendes continuar a desenvolver obras no formato de novela gráfica ou vais regressar às bandas desenhadas curtas?
MA: Em relação ao futuro e após a aquisição das ferramentas digitais, estou a iniciar um novo ciclo, muito atrasado mas julgo que ainda a tempo. Uma nova novela gráfica está já terminada e será novamente uma adaptação de uma obra portuguesa de relevo, desta vez por Fernando Pessoa, cuja bibliografia considero ser pouco explorada no mercado de BD. Será a minha primeira tentativa do uso das ferramentas digitais para completar o projecto. Neste caso, vou contando com a preciosa ajuda do autor João Raz e da autora Patrícia Costa, para me ajudarem a ultrapassar as barreiras tecnológicas.
Futuramente. vale tudo. Fanzines, BDs curtas, esboços, novelas gráfica, exposições etc… basta um clic! Agora, o tempo dá para tudo, só que tem de ser com alguma rapidez pois ele não é eterno.
Sinceramente espero que tudo isto tenha um final feliz. Ficarei eternamente agradecido a todos os que me ajudam nesta aventura em que um velho de 64 anos se meteu. Obrigado a todos!
A Implosão!, de Mário André, baseado no livro de Nuno Júdice, será apresentado no 16º Festival Internacional de BD de Beja '2021.
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