2023-02-14

Quaresma, o Decifrador vol.1 – Outra crítica

O autor/editor Mário André continua a somar críticas favoráveis à sua adaptação para banda desenhada do decifrador Quaresma, criado por Fernando Pessoa o início do séc.XX e protagonista das suas novelas policiais. A nova crítica surge da Drª Alexandra Lourenço Dias, docente na Brown Libra University do Reino Unido, publicada na revista Pessoa Plural #22, um volume semestral que reúne ensaios e textos críticos, dedicados exclusivamente à obra do poeta lisboeta.

Alexandra Lourenço Dias, em Revista Pessoa Plural #22:

A arte do raciocínio

(ANDRÉ, Mário (2022). O caso do quarto fechado. Lisboa: Kustom Rats, 68 pp., a preto e branco, Dep. Legal 499904/22)

Elogiada por uns, menosprezada por outros, a banda desenhada é uma forma de expressão que protagoniza um papel cada vez mais preponderante na cultura e nas artes contemporâneas. Pelos contornos de grande originalidade de que se reveste, pela diversidade de públicos a que se dirige, não encontra, tal como qualquer outra linguagem, entraves à prática criativa.
Do grotesco ao sublime, do onírico ao documentário, da sátira à filosofia, explora magistralmente os recursos do meio que a singularizam. A amplitude de tópicos que cobre é ilimitada, assim como a diversidade de géneros, da ficção à não ficção, onde a adaptação de obras literárias ocupa um lugar de destaque. Este fenómeno, praticamente universal, e que está na base da sua origem – com as adaptações de Voyages et aventures du docteur Festus e Little Nemo, respectivamente, por Töpffer e McCay –, é, também, uma característica da evolução dos processos artísticos e culturais contemporâneos cuja fusão e esbatimento da especificidade de cada uma das artes é cada vez mais comum.
A multiplicidade de novas práticas narrativas que encorajam diálogos intermodais e o intercâmbio narrativo entre diferentes meios de expressão encontram na literatura uma fonte de inspiração privilegiada que, nas palavras de Thierry GROENSTEEN (1999: 14), constitui a matriz de reprodução de todas as ficções. O número de colecções dedicadas em exclusivo a adaptações – em Portugal, a colecção Clássicos da Literatura em Banda Desenhada que conta com cerca de trinta títulos – não deixa dúvidas de que a literatura, com o número crescente de clássicos em domínio público, representa uma dádiva para todos quantos estão envolvidos na indústria, de criadores a livreiros.
Em Portugal, a tendência é para a adaptação de obras literárias portuguesas e as escolhas prendem-se, na sua maior parte, com o lugar que a obra ocupa no cânone literário nacional. Luís de Camões, Alexandre Herculano, Júlio Dinis e Eça de Queirós são certamente os autores que mais adaptações a BD conhecem, tendo as décadas de 1950 e de 1960 encontrado grande inspiração nas vidas e obras destes escritores, não obstante as reedições posteriores continuarem a alimentar aquela que foi sempre uma constante na 9.ª arte portuguesa. A preferência recai geralmente sobre obras de carácter narrativo, no entanto, o drama e a poesia – Gil Vicente e Herberto Helder, respectivamente – serviram também de fontes de exploração estética à arte da figuração narrativa. Recentemente, Miguel Torga, José Saramago e Nuno Júdice vieram enriquecer a lista.
Se, por um lado, a popularidade do autor ou da obra e, por outro, o grau de acolhimento do público – com incentivos por parte das instituições pedagógicas e secretarias da Cultura – casos há, porém, em que a escolha surpreende pela sua invulgaridade, seja ela resultado do efeito de estranheza gerada pela obra no seu leitor – entenda-se o autor da adaptação – seja a intensidade com que esta despertou nele o desejo por imagens (PEETERS, 1993: 88). Tal é o caso, por exemplo, de A Morte do Palhaço de Raul Brandão e da novela gráfica sobre a qual nos debruçaremos aqui, a adaptação do conto policial de Fernando Pessoa “O Caso do Quarto Fechado”.
A novela gráfica homónima de Mário André foi lançada em Maio de 2022, pela Kustom Rats, a editora recentemente criada pelo próprio, no que podemos definir como uma edição de autor. Coincidentemente, esta novela gráfica surge passados dez anos sobre a primeira vez que Fernando Pessoa foi adaptado a BD em Portugal. Ao contrário do que seria de esperar, esta estreia não foi executada por artistas nacionais, mas pela espanhola Laura Pérez Vernetti que, no seu trabalho, explora a obra poética de Pessoa e os seus heterónimos mais conhecidos. Usando fotografias do poeta e pinturas de Almada Negreiros, a biografia do autor é desenhada a preto e branco; já os desenhos dos poemas de Pessoa e dos heterónimos, são representados num universo a cores. A esta, seguiu-se, em 2015, uma outra biografia pela dupla Miguel Moreira e Catarina Verdier que difere da primeira por incluir segmentos do Livro do Desassossego e trazer corpo a Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Em 2016, André F. Morgado e Alexandre Leoni apostam numa abordagem mais alternativa, fundindo ficção e realidade. À excepção da obra de Vernetti, que inclui a adaptação de poemas dos heterónimos, os restantes autores parecem encontrar na biografia e na pluralidade do eu literário do poeta, o tema predilecto. Mário André, curiosamente, envereda por um outro caminho e traz ao universo da arte sequencial uma das vertentes da obra do escritor menos conhecida. Esta escolha tem a dupla valência de dar a conhecer uma faceta de Fernando Pessoa desconhecida do grande público, o seu gosto pelo romance policial e as suas próprias incursões no género, que ele mesmo define como “contos policiários”, e de trazer visibilidade ao trabalho de edição do espólio do autor que apresenta ao público nacional um, não tão carismático, mas igualmente perspicaz, Sherlock Holmes à portuguesa: raciocinador sofisticado, “médico sem clínica” e “matemático da realidade” cujo espírito se alimenta de “charadas, problemas de xadrez, quebra-cabeças geométricos e matemáticos” e “vive com eles como com uma mulher. O raciocínio aplicado era o seu harém” (PESSOA, 2008: 33). Esta novela encontra-se integrada no conjunto reunido sob o título Quaresma, Decifrador, conjunto de textos fragmentários e incompletos, que revela do gosto do poeta por charadas, desenvolvido em torno do raciocinador infalível Abílio Fernandes Quaresma, uma figura que ultrapassa, segundo Ana Maria de Freitas, o simples personagem e ocupa um lugar na realidade ficcionada do universo pessoano, ao lado dos heterónimos (apud PESSOA, 2008: 10).
Mário André é um estreante no universo da banda desenhada e se o virtuosismo do traço é ainda um trabalho em progresso, a transposição de um conteúdo literário para BD parece ser nele uma vocação natural. O conto “O Caso do Quarto Fechado”, o volume inicial do conjunto de novelas policiárias de Pessoa, é um texto que podemos definir, do ponto de vista da exegese, como pouco opaco e simples, em termos da estrutura da narrativa.
É uma história com um só enredo que se desenvolve de forma linear, composto por uma mão cheia de personagens que se reúnem em torno do que aparenta ser um simples caso de suicídio. Todos os eventos decorrem sequencialmente, na sua maior parte, em espaços interiores. Pela brevidade e equilíbrio entre momentos de diálogos e momentos descritivos é um texto facilmente adaptável, possuindo aquilo que Philippe Marion designa de “mediagenia”, ou seja, a capacidade de uma determinada história existir fora do meio em que foi originalmente concebida e de suportar a série de restrições e deformações associadas à configuração intrínseca do novo meio, ou seja, o processo de trans-semiotização (MARION e GAUDREAULT, 1998: 46). As cerca de vinte e nove páginas que o constituem representam um número ideal do ponto de vista editorial de um álbum de BD e, ao contrário de outros contos, este foi concluído pelo seu autor. Fernando Pessoa sentia relutância em acabar os seus trabalhos e num texto relativo ao seu processo de escrita, confessa: “Não consigo evitar a aversão que tem o meu pensamento pelo acto de acabar seja o que for. […] O meu carácter é tal que eu detesto o princípio e o fim das coisas, pois são pontos definidos” (PESSOA, 2003: 100). Mário André tem uma outra adaptação em curso,”“O Crime”, resta saber em que medida esta característica de Pessoa é para o desenhador um desafio ou um obstáculo. O conto “O Caso do Quarto Fechado” não sofreu alterações significativas no processo de adaptação. Do ponto de vista diegético, não existem elisões, adições ou modificações dos acontecimentos da história, apenas a transposição inter-semiótica esperada e os constrangimentos intrínsecos à passagem a um código icónico-verbal.
O texto foi incorporado nas pranchas com reduções pontuais e condensação, o que é de esperar. Em certos casos, foram substituídas palavras por equivalentes, substituição desnecessária, já que a novela gráfica nada perde em respeitar na íntegra a semântica pessoana. A proximidade à obra de origem, sendo desejável não é necessariamente obrigatória, no entanto, e sendo aqui o caso, favorece a interpretação visual o que resulta numa certa previsibilidade do material gráfico-figurativo produzido, imediatamente associado ao que é representado no texto de origem.
O trabalho de Mário André é mais focado na narrativa do que na exploração das possibilidades visuais da pintura ou do desenho e o ambiente em que decorre a acção é aqui conseguido pela ausência de cor e pela exploração do preto e branco. Em algumas vinhetas, nota-se algum vazio de detalhe decorativo, nomeadamente de elementos contextuais como decoração dos quartos onde surge apenas a personagem em plano médio (mais frequente) ou em grande plano, contra o que assumimos ser uma parede em branco. A integração de elementos de art deco, pontual, enriquece bastante o texto visual e acrescenta apontamentos da estética da época.
Toda a obra de Pessoa é um espaço privilegiado para o desenvolvimento de experiências de teor literário-filosófico e no género policial não poderia ser diferente. Tratando-se de uma novela de raciocínio, é uma história centrada no exercício mental, no que Pessoa define como a “arte de raciocinar”. Assim, existe uma certa falta de dinamismo nesta adaptação que resulta da própria natureza do texto onde as personagens deambulam em longos processos de inferência pois é o exercício de lógica mental que constitui a chave da resolução do enigma.
Todavia, uma adaptação é participar do mundo ficcional do autor conservando a sua essência. É dar uma segunda vida ao texto, num processo criativo que associa tanto conservação como a novidade (HUTCHEON, 2006: 35). Assim, vale a pena a sua leitura porquanto esta convida a duas descobertas: a de um Fernando Pessoa aos quadradinhos, não poético, mas policial, e a do seu palimpsesto."


GAUDREAULT, André; GROENSTEEN, Thierry (eds.) (1998). La Transécriture. Québec & Angoulême: Editions Nota Bene / CNBDI.
GROENSTEEN, Thierry (1999). Système de la Bande Dessinée. Paris: P.U.F.
GROENSTEEN, Thierry; PEETERS, Benoît (1994). Töpffer : L’invention de la bande dessinée. Paris: Hermann.
HUTCHEON, Linda (2006). A Theory of Adaptation. New York & London: Routledge.
MARION, P.; GAUDREAULT, A.(1998). “Transécriture et médiatique narrative : l’enjeu de l’intermédialité”.
La Transécriture. Angoulême: Editions Nota Bene / CNBDI.
MITAINE, Benôit;ROCHE, David; SCHMITT-PITIOT, Isabelle (2018) (eds.). Comics and Adaptation. Tradução de Aarnoud Rommens e David Roche. Jackson: University Press of Mississippi.
MOREIRA, Miguel (2012). “As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal”. Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 2, Outono, pp. 317-331. Brown Digital Repository,
Brown University Library. https://doi.org/10.7301/ZOJW8CCH
PEETERS, Benôit (1993). La Bande Dessinée. Paris: Flammarion.
PESSOA, Fernando (2008). Quaresma, decifrador. Edição de Ana Maria de Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal. Edição de Richard Zenith; colaboração de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim.
VERNETTI, Laura Pérez. (2012). Pessoa & CIA. Tradução de Maria José Magalhães Pereira. Alfragide: Asa.

ALEXANDRA LOURENÇO DIAS é natural de Portugal e completou o seu doutoramento em 2013 na Universidade do Porto. Actualmente é professora de Estudos Portugueses no King’s College London e Directora do Camões – Centro de Língua e Cultura Portuguesa. Na sua investigação, Alexandra centra-se no estudo de novelas gráficas portuguesas, com particularfoco nos processos de tradução inter-semiótica do romance literário à banda desenhada. Nos últimos anos, expandiu a sua área de investigação incluindo a ficção pós-colonial de língua portuguesa e novelas gráficas dos países de língua oficial portuguesa. Alexandra interessa-se particularmente por examinar como as questões relacionadas com o colonialismo se manifestam nas intersecções entre várias narrativas lusófonas, tanto literárias como multimodais.

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