O
autor/editor Mário André continua a somar críticas
favoráveis à sua adaptação para banda desenhada do decifrador
Quaresma, criado por Fernando Pessoa o início do séc.XX e
protagonista das suas novelas policiais. A nova crítica surge da Drª
Alexandra Lourenço Dias, docente na Brown Libra University do Reino
Unido, publicada na revista Pessoa Plural #22,
um volume semestral que reúne ensaios e textos críticos, dedicados
exclusivamente à obra do poeta lisboeta.
Alexandra
Lourenço Dias, em Revista Pessoa Plural #22:
“A
arte do raciocínio
(ANDRÉ,
Mário (2022). O caso do quarto fechado. Lisboa: Kustom Rats,
68 pp., a preto e branco, Dep. Legal 499904/22)
Elogiada
por uns, menosprezada por outros, a banda desenhada é uma forma de
expressão que protagoniza um papel cada vez mais preponderante na
cultura e nas artes contemporâneas. Pelos contornos de grande
originalidade de que se reveste, pela diversidade de públicos a que
se dirige, não encontra, tal como qualquer outra linguagem, entraves
à prática criativa.
Do
grotesco ao sublime, do onírico ao documentário, da sátira à
filosofia, explora magistralmente os recursos do meio que a
singularizam. A amplitude de tópicos que cobre é ilimitada, assim
como a diversidade de géneros, da ficção à não ficção, onde a
adaptação de obras literárias ocupa um lugar de destaque. Este
fenómeno, praticamente universal, e que está na base da sua origem
– com as adaptações de Voyages et aventures du docteur Festus
e Little Nemo, respectivamente, por Töpffer e McCay –, é,
também, uma característica da evolução dos processos artísticos
e culturais contemporâneos cuja fusão e esbatimento da
especificidade de cada uma das artes é cada vez mais comum.
A
multiplicidade de novas práticas narrativas que encorajam diálogos
intermodais e o intercâmbio narrativo entre diferentes meios de
expressão encontram na literatura uma fonte de inspiração
privilegiada que, nas palavras de Thierry GROENSTEEN (1999: 14),
constitui a matriz de reprodução de todas as ficções. O número
de colecções dedicadas em exclusivo a adaptações – em Portugal,
a colecção Clássicos da Literatura em Banda Desenhada que
conta com cerca de trinta títulos – não deixa dúvidas de que a
literatura, com o número crescente de clássicos em domínio
público, representa uma dádiva para todos quantos estão envolvidos
na indústria, de criadores a livreiros.
Em
Portugal, a tendência é para a adaptação de obras literárias
portuguesas e as escolhas prendem-se, na sua maior parte, com o lugar
que a obra ocupa no cânone literário nacional. Luís de Camões,
Alexandre Herculano, Júlio Dinis e Eça de Queirós são certamente
os autores que mais adaptações a BD conhecem, tendo as décadas de
1950 e de 1960 encontrado grande inspiração nas vidas e obras
destes escritores, não obstante as reedições posteriores
continuarem a alimentar aquela que foi sempre uma constante na 9.ª
arte portuguesa. A preferência recai geralmente sobre obras de
carácter narrativo, no entanto, o drama e a poesia – Gil Vicente e
Herberto Helder, respectivamente – serviram também de fontes de
exploração estética à arte da figuração narrativa.
Recentemente, Miguel Torga, José Saramago e Nuno Júdice vieram
enriquecer a lista.
Se,
por um lado, a popularidade do autor ou da obra e, por outro, o grau
de acolhimento do público – com incentivos por parte das
instituições pedagógicas e secretarias da Cultura – casos há,
porém, em que a escolha surpreende pela sua invulgaridade, seja ela
resultado do efeito de estranheza gerada pela obra no seu leitor –
entenda-se o autor da adaptação – seja a intensidade com que esta
despertou nele o desejo por imagens (PEETERS, 1993: 88). Tal é o
caso, por exemplo, de A Morte do Palhaço de Raul Brandão e da
novela gráfica sobre a qual nos debruçaremos aqui, a adaptação do
conto policial de Fernando Pessoa “O Caso do Quarto Fechado”.
A
novela gráfica homónima de Mário André foi lançada em Maio de
2022, pela Kustom Rats, a editora recentemente criada pelo próprio,
no que podemos definir como uma edição de autor. Coincidentemente,
esta novela gráfica surge passados dez anos sobre a primeira vez que
Fernando Pessoa foi adaptado a BD em Portugal. Ao contrário do que
seria de esperar, esta estreia não foi executada por artistas
nacionais, mas pela espanhola Laura Pérez Vernetti que, no seu
trabalho, explora a obra poética de Pessoa e os seus heterónimos
mais conhecidos. Usando fotografias do poeta e pinturas de Almada
Negreiros, a biografia do autor é desenhada a preto e branco; já os
desenhos dos poemas de Pessoa e dos heterónimos, são representados
num universo a cores. A esta, seguiu-se, em 2015, uma outra biografia
pela dupla Miguel Moreira e Catarina Verdier que difere da primeira
por incluir segmentos do Livro do Desassossego e trazer corpo
a Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.
Em 2016, André F. Morgado e Alexandre Leoni apostam numa abordagem
mais alternativa, fundindo ficção e realidade. À excepção da
obra de Vernetti, que inclui a adaptação de poemas dos heterónimos,
os restantes autores parecem encontrar na biografia e na pluralidade
do eu literário do poeta, o tema predilecto. Mário André,
curiosamente, envereda por um outro caminho e traz ao universo da
arte sequencial uma das vertentes da obra do escritor menos
conhecida. Esta escolha tem a dupla valência de dar a conhecer uma
faceta de Fernando Pessoa desconhecida do grande público, o seu
gosto pelo romance policial e as suas próprias incursões no género,
que ele mesmo define como “contos policiários”, e de trazer
visibilidade ao trabalho de edição do espólio do autor que
apresenta ao público nacional um, não tão carismático, mas
igualmente perspicaz, Sherlock Holmes à portuguesa: raciocinador
sofisticado, “médico sem clínica” e “matemático da
realidade” cujo espírito se alimenta de “charadas, problemas de
xadrez, quebra-cabeças geométricos e matemáticos” e “vive com
eles como com uma mulher. O raciocínio aplicado era o seu harém”
(PESSOA, 2008: 33). Esta novela encontra-se integrada no conjunto
reunido sob o título Quaresma, Decifrador, conjunto de textos
fragmentários e incompletos, que revela do gosto do poeta por
charadas, desenvolvido em torno do raciocinador infalível Abílio
Fernandes Quaresma, uma figura que ultrapassa, segundo Ana Maria de
Freitas, o simples personagem e ocupa um lugar na realidade
ficcionada do universo pessoano, ao lado dos heterónimos (apud
PESSOA, 2008: 10).
Mário
André é um estreante no universo da banda desenhada e se o
virtuosismo do traço é ainda um trabalho em progresso, a
transposição de um conteúdo literário para BD parece ser nele uma
vocação natural. O conto “O Caso do Quarto Fechado”, o volume
inicial do conjunto de novelas policiárias de Pessoa, é um texto
que podemos definir, do ponto de vista da exegese, como pouco opaco e
simples, em termos da estrutura da narrativa.
É
uma história com um só enredo que se desenvolve de forma linear,
composto por uma mão cheia de personagens que se reúnem em torno do
que aparenta ser um simples caso de suicídio. Todos os eventos
decorrem sequencialmente, na sua maior parte, em espaços interiores.
Pela brevidade e equilíbrio entre momentos de diálogos e momentos
descritivos é um texto facilmente adaptável, possuindo aquilo que
Philippe Marion designa de “mediagenia”, ou seja, a capacidade de
uma determinada história existir fora do meio em que foi
originalmente concebida e de suportar a série de restrições e
deformações associadas à configuração intrínseca do novo meio,
ou seja, o processo de trans-semiotização (MARION e GAUDREAULT,
1998: 46). As cerca de vinte e nove páginas que o constituem
representam um número ideal do ponto de vista editorial de um álbum
de BD e, ao contrário de outros contos, este foi concluído pelo seu
autor. Fernando Pessoa sentia relutância em acabar os seus trabalhos
e num texto relativo ao seu processo de escrita, confessa: “Não
consigo evitar a aversão que tem o meu pensamento pelo acto de
acabar seja o que for. […] O meu carácter é tal que eu detesto o
princípio e o fim das coisas, pois são pontos definidos” (PESSOA,
2003: 100). Mário André tem uma outra adaptação em curso,”“O
Crime”, resta saber em que medida esta característica de Pessoa é
para o desenhador um desafio ou um obstáculo. O conto “O Caso do
Quarto Fechado” não sofreu alterações significativas no processo
de adaptação. Do ponto de vista diegético, não existem elisões,
adições ou modificações dos acontecimentos da história, apenas a
transposição inter-semiótica esperada e os constrangimentos
intrínsecos à passagem a um código icónico-verbal.
O
texto foi incorporado nas pranchas com reduções pontuais e
condensação, o que é de esperar. Em certos casos, foram
substituídas palavras por equivalentes, substituição
desnecessária, já que a novela gráfica nada perde em respeitar na
íntegra a semântica pessoana. A proximidade à obra de origem,
sendo desejável não é necessariamente obrigatória, no entanto, e
sendo aqui o caso, favorece a interpretação visual o que resulta
numa certa previsibilidade do material gráfico-figurativo produzido,
imediatamente associado ao que é representado no texto de origem.
O
trabalho de Mário André é mais focado na narrativa do que na
exploração das possibilidades visuais da pintura ou do desenho e o
ambiente em que decorre a acção é aqui conseguido pela ausência
de cor e pela exploração do preto e branco. Em algumas vinhetas,
nota-se algum vazio de detalhe decorativo, nomeadamente de elementos
contextuais como decoração dos quartos onde surge apenas a
personagem em plano médio (mais frequente) ou em grande plano,
contra o que assumimos ser uma parede em branco. A integração de
elementos de art deco, pontual, enriquece bastante o texto visual e
acrescenta apontamentos da estética da época.
Toda
a obra de Pessoa é um espaço privilegiado para o desenvolvimento de
experiências de teor literário-filosófico e no género policial
não poderia ser diferente.
Tratando-se de uma novela de raciocínio, é uma história centrada
no exercício mental, no que Pessoa define como a “arte de
raciocinar”. Assim, existe uma certa falta de dinamismo nesta
adaptação que resulta da própria natureza do texto onde as
personagens deambulam em longos processos de inferência pois é o
exercício de lógica mental que constitui a chave da resolução do
enigma.
Todavia,
uma adaptação é participar do mundo ficcional do autor conservando
a sua essência. É dar uma segunda vida ao texto, num processo
criativo que associa tanto conservação como a novidade (HUTCHEON,
2006: 35). Assim, vale a pena a sua leitura porquanto esta convida a
duas descobertas: a de um Fernando Pessoa aos quadradinhos, não
poético, mas policial, e a do seu palimpsesto."
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Laura Pérez. (2012). Pessoa & CIA. Tradução de Maria José
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ALEXANDRA
LOURENÇO DIAS é natural de Portugal e completou o seu doutoramento
em 2013 na Universidade do Porto. Actualmente é professora de
Estudos Portugueses no King’s College London e Directora do Camões
– Centro de Língua e Cultura Portuguesa. Na sua investigação,
Alexandra centra-se no estudo de novelas gráficas portuguesas, com
particularfoco nos processos de tradução inter-semiótica do
romance literário à banda desenhada. Nos últimos anos, expandiu a
sua área de investigação incluindo a ficção pós-colonial de
língua portuguesa e novelas gráficas dos países de língua oficial
portuguesa. Alexandra interessa-se particularmente por examinar como
as questões relacionadas com o colonialismo se manifestam nas
intersecções entre várias narrativas lusófonas, tanto literárias
como multimodais.
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