2021-06-08

Leitura Tágide 4: Monsters

Monsters - A lição de banda-desenhada do mestre Barry Windsor-Smith

Produto da imaginação, talento, ofício e persistência do autor de banda-desenhada britânico Barry Windsor-Smith,
Monsters, ao longo das suas 360 páginas, explora a forma como os efeitos perversos da violência se repercutem ao longo de gerações, afetando não só as vítimas diretas, mas também as que se encontram mais distantes, no tempo ou no espaço. Desenvolvida ao longo de trinta e cinco anos, esta é daquelas bandas-desenhadas que foi ganhando perfil de lenda muito antes do anúncio final da sua publicação num único volume. Não irei aqui entrar em muitos pormenores acerca da produção deste livro, mas posso referir que a sua origem se reporta a meados da década de 1980, quando o autor colaborava com a Marvel Comics. Na época, Windsor-Smith começou a trabalhar em Thanksgiving, uma história de 23 páginas que exploraria os traumas de infância de Bruce Banner como possível origem secreta do Incrível Hulk. Segundo o autor, originalmente era seu desejo conferir alguma profundidade emocional ao Hulk, uma personagem icónica por quem, o seu irmão mais novo, com Síndrome de Downe, nutria particular afeto. Entretanto, sem conhecimento do autor e antes que a banda-desenhada estivesse concluída, a sua ideia foi publicada pela editora sob autoria de outros, levando ao desentendimento de Barry Windsor-Smith com a Marvel. Nas décadas volvidas, o autor continuou a desenvolver esta banda-desenhada, acrescentando-lhe pranchas, explorando personagens e ramificações da história, transformando-a numa obra própria e independente, sem referências diretas às suas origens e com a ambição de um romance literário. O resultado é um livro adulto e perturbador que, apesar de deixar vislumbrar perfeitamente as suas raízes, está muito longe dos registos infanto-juvenis de ação e aventura do super-herói onde se originou.


Num resumo muito simples e que não faz, de todo, justiça à sua complexidade narrativa e dramática, o livro vai-nos apresentando as consequências e as causalidades por trás da tragédia anunciada nas primeiras pranchas, o espancamento brutal de Bobby Bayley, um menino de oito anos, pelo seu pai, um veterano de guerra, em 1949, que lhe deixará cicatrizes físicas e psicológicas para o resto da vida. Após a cena inaugural, traumática e incontornável, à qual o livro acabará por retornar, dá-se um salto cronológico até 1964, seguindo um jovem Bobby Bayley, que se apresenta como voluntário para o exército norte-americano. Recrutado pelo sargento MacFarland, um militar afro-americano que acabará por desempenhar um papel fundamental em toda a trama, o jovem é encaminhado para um projeto militar secreto, fruto da integração da ciência nazi na sociedade norte-americana, à semelhança da Operação Paperclip, que o transformará irremediavelmente num monstro. Assombrado por visões do destino horrendo de Bobby, mas incapaz de perceber o elo profundo que os une, MacFarland procurará a todo o custo remediar os efeitos das suas ações, mesmo que para isso tenha de sacrificar a sua própria família...

Após a trama de suspense da primeira centena de pranchas, a narrativa prossegue focando-se na vida pessoal dos membros da família Bayley em diferentes momentos e regredindo no tempo, apresentando um mosaico de profundo humanismo e detalhe, num crescendo de dor e sofrimento, até culminar num brilhante
götterdämmerung da Alemanha nazi, antes do epílogo agridoce e possível. Ao explorar esta temática complexa, Windsor-Smith acaba por reconhecer, enquanto autor, a incapacidade humana em encontrar uma resposta para o mistério da iniquidade, nunca chegando a resolver o enigma da origem do mal. No fundo, todos nesta narrativa, em menor ou maior grau, acabam por demonstrar alguma monstruosidade, por fora ou por dentro. No entanto, à boa maneira hippie, o autor conclui o livro apresentando o amor como único caminho para uma possível redenção.


Talvez a referência mais acessível para o grande público perceber o género em que Monsters pode ser inserido enquanto história, seja o trabalho do escritor Stephen King, amplamente divulgado não só pelos livros, mas principalmente pelas suas ubíquas adaptações aos meios audiovisuais. À semelhança de King, mas utilizando a BD em vez da prosa como meio de expressão, Barry Windsor-Smith desenvolve aqui uma obra que: integra elementos como a composição cuidada e rica das personagens, do tempo e do lugar num modo naturalista; revela um certo fascínio pela chamada Americana, patente nesta obra, por exemplo, nas referências aos próprios comic books, a Norman Rockwell, a Andrew Wyeth ou às small towns iconizadas pelo cinema de Hollywood e pelas séries de TV; apresenta o sobrenatural como uma das forças motrizes da trama, através de personagens com capacidades paranormais e a proliferação de coincidências e sincronismos inesperados. Finalmente, tal como em King, sobre toda esta tapeçaria paira, como uma nuvem escura e densa, o mal, representado pelas forças militares e serviços secretos norte-americanos, pelos horrores da eugenia, pela violência doméstica ou pelo nazismo. Não creio que King seja uma influência consciente no trabalho de Windsor-Smith, mas é o atalho mais fácil para retratar um pouco esta história para um público alargado. Na prática, estas semelhanças serão mais devidas ao facto de ambos os autores serem baby boomers, produtos de um determinado zeitgeist e com influências comuns.

Na minha opinião, o grande trunfo desta obra é o desenho, como naturalmente seria de se esperar numa BD. Feita integralmente a preto e branco, sem tons de cinza, tramas decalcadas ou digitais, o leitor vê-se face a face com um desenho sem filtro, como se estivesse a olhar para um manuscrito. Esta frontalidade produz um efeito de intimismo, que reforça o caráter humanista da história narrada. Barry Windsor-Smith deslumbra ao explorar ao máximo os limites do desenho, do rigor, do pormenor, das texturas e do claro-escuro, num registo a tinta, preto/branco, esbanjando virtuosismo. Estamos diante de um registo que quase se poderia epitetar de académico ou clássico, sem, no entanto, deixar alguma vez de ser banda-desenhada. A diagramação inteligente e adequada a cada sequência da história, a profusão de omonatopeias e o uso inteligente e adequado dos balões de fala enquanto dispositivos de direcionamento do sentido de leitura ao longo das pranchas, deixam sempre bem patente que, independentemente das suas influências vindas da pintura ou do desenho académico, Barry Windsor-Smith é, e continua a ser, um herdeiro da tradição dos
comic books segundo Jack Kirby.

Para terminar, devo dizer que normalmente não me comovo facilmente com a leitura de livros de BD. Aqueles que me conhecem pessoalmente sabem que tenho uma profunda paixão pela banda-desenhada, mas, regra geral, a minha fruição deste meio de expressão concentra-se mais em aspetos formais ou estéticos. Contudo, surpreendentemente e contra todas as minhas próprias expetativas, no final, Monsters conseguiu o improvável: comover-me. E muito. Obrigado, Barry Windsor-Smith.

Pedro Cruz

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