2021-12-10

Leituras Tágide 6 – Duas criaturas

As leituras Tágide regressam (ver aqui as criticas a Bouncer, X-Men: Elsewhen, Red Mother, Monsters e Fahrenheit 451) e hoje menciono duas publicações com alguns anos, que têm criaturas no centro das narrativas: falo do inovador indie Malus de Christopher Webster (Mmmnnnrrrg) e do clássico Beowulf revisto por Santiago Garcia e David Rubin (Ala dos Livros).

Provavelmente das mais bonitas produções da editora Mmmnnnrrrg, simples mas impactante, Malus foi criado pelo britânico Christopher Webster, autor de banda desenhada alternativa e também artista de storyboards no Reino Unido. Foi um dos primeiros autores ocidentais a trabalhar num título de manga semanal, o Comics Morning, com Mr.Pillow (Kodansha, 1993), e publicou também Ecco the Dolphin (Fleetway, 1995), Rockdrill (Deadline, 1995) e Frozen (Serpent’s Tail, 1997), e as séries auto-editadas Neversedge (1989), Malus (1995) e Wormwood (2001). Colaborou ainda na antologia It’s Dark in London, editada por Oscar Zarate.
Malus (2005) é a única compilação existente desta série e constituiu uma forte aposta da Mmmnnnrrg, sendo invulgarmente publicada em versão bilingue, com texto no original inglês mas tradução para português em rodapé, uma solução tentada em certas edições naquela época, não só para preservar a autenticidade da obra estrangeira como para ajudar ao comércio do título perante o insuficiente mercado de BD nacional.

Webster é um autor que desafia definições, tendo sido igualmente comparado a grandes nomes do sector alternativo, como David Mazzuchelli, Dean Ormstron, Paul Pope e Ted McKeever, e a astros do segmento comercial,
tais como Frank Miller, Jack Kirby ou Todd McFarlane. Esta peculiaridade está patente também na sua escrita, que orbita a acção dos comic-books mas de pé bem assente na sensibilidade indie. As suas páginas, de fortes manchas gráficas, nervosas e enérgicas, mantêm uma intensa verve plástica mas permitem em simultâneo uma aproximação à humanidade das personagens e das situações.
Em
Malus, temos uma óbvia mistura de temas, entre a aventura super-heróica do estilo Hulk da Marvel ou Destroy!, de Scott McCloud, e a ficção científica cyberpunk ao jeito de Akira, por exemplo. Mas a este cocktail de influências junta-se uma bem patente e inqualificável bizarria, que nos remete também para visionários como David Cronenberg ou Shinya Tsukamoto. Um delírio visual que teima em não facilitar a leitura enquanto eleva o género “Art Brut” ao caos narrativo dos melhores comix underground dos anos 90. A história, contada entre sequências de combate entre dois hercúleos mutantes, segue um grupo de homens escolhidos para experiências transhumanistas, que depois se revoltam contra a entidade que os tentou explorar. Uma premissa simples, que é, todavia, filtrada no estranho simbolismo e aparente criticismo da obra à sociedade corporativa e a “governos sombra.”


Há muito
que é deixado por definir em Malus. Muito que é aludido pelo autor e encoberto por mitologias modernas e por lugares-comum sociais, sendo entregue ao leitor a busca por fazer sentido da cacofonia de tópicos que são apresentados. Até o próprio título representa uma incógnita: malus significa “mau” em latin, ou maléfico, perverso, abjecto, nocivo; significa também, no jargão legal, a penalização de uma entidade corporativa para com um trabalhador cuja acção resulte em perdas para a companhia. Ambos os contextos reflectem bem a natureza da obra, mas a interpretação final compete apenas ao leitor e é-lhe deixada em aberto, tal como é também algo inconclusivo o desfecho da história. Uma BD para ler e reler com apreço.


Beowulf
merece destaque por vários motivos. Logo em primeiro lugar por ser a primeira publicação da nova editora Ala dos Livros, mais tarde revelada como um projecto de editores de 3ª geração, netos do saudoso escritor/editor Jorge Magalhães (1938-2018) e filhos da igualmente importante editora Maria José Pereira.
Publicado em meados de 2018,
Beowulf é um esplêndido livro-objecto, onde – à imagem das personalidades dos heróis e do próprio monstro(s) com que estes se digladiam – tudo é grande!... O álbum é grande (22x31’), é longo (200p), é pesado (capa cartonada e papel de miolo espesso), o título é garrafal, assim como é “estridente” a legendagem; o que, aliás, faz sentido, pois reflete da melhor forma os modos brutos e fanfarrões dos guerreiros vikings. Hoje, com trinta publicações realizadas em pouco mais de três anos, com a ressalva de seis dessas serem edições integrais e, portanto, conterem 4 álbuns regulares cada, está visto que a editora gosta de apostar em grande e, em especial, de fazer grandes edições. Como tal, não podiam ter escolhido melhor obra para abrir as hostilidades editoriais.

Beowulf
é uma adaptação fiel ao epónimo poema épico anglo-saxão por autor anónimo, uma peça cultural com mais de mil anos que influênciou inúmeros autores modernos, desde J.R.R. Tolkien a diversos filmes (e.g. Predador, Último Viking, fora adaptações directas), que narra a viagem e aventuras de Beowulf, um viril e poderoso herói escandinavo, que ajuda o rei dos Daneses a eliminar o monstruoso Grendel, uma criatura que há uma década assola e devora o povo, perante a impotência do regente.
Os autores, o escritor
Santiago García e desenhador David Rubín, cedem os seus talentos a uma versão ultra violenta mas devidamente épica do manuscrito, enquanto que simultaneamente quebram com as regras na adaptação de contos milenares como este. Aplicando uma hábil inventividade compositiva às pranchas, que quebra com a estrutura mais tradicional de planificação de páginas de BD, a versão de García & Rubín acaba, por contraste, por se identificar melhor com o estoicismo da narrativa original. O horror físico, a tensão de cortar à espada, a vertigem da acção tem aqui uma das melhores transcrições para um meio visual.
E tal como a planificação intrincada guia o leitor de um modo inovador
e criativo, também a cor tem um papel importante na obra, ao fazer uso das teorias da psicologia das cores por forma a potenciar as sensações que se deseja incutir no leitor. Não só os jorros de sangue são de um vermelho vibrante, que se impõe extraordinariamente nas vinhetas, como as demais cenas são coloridas adequadamente, com tons azuis estéreis nas gélidas planícies escandinavas ou ocres escuros no interior dos casebres, para além de amarelos enervantes para cenas de tensão e verdes obscuros em sequências de temor. Nada que não se tenha visto anteriormente noutras obras, mas que aqui é bem aplicado e contribui para tecer a epopeia nórdica.


Em suma, Beowulf tira o melhor proveito possível de oportunidades narrativas intrínsecas à arte sequencial. Por exemplo, o diluir da acção em diversas vinhetas que são acompanhadas por ilustrações de maior panorâmica e detalhe, não só enchem o olho, como transmitem uma visão rica dos momentos retratados. Esta exploração da natureza da narrativa visual ensaiada no álbum é sublinhada no final do livro, como que em epílogo, onde se acentua a progressão dos meios de contar histórias. Da tradição oral para a escrita e depois para diferentes modos de a difundir, a narrativa segue a vida deste mito até às últimas instâncias, passando pela própria impressão do livro até chegar às mãos do leitor. Este, à imagem doutros ouvintes do poema em tempos imemoriais, faz agora parte da história, e porventura há-de lhe “acrescentar um ponto...”

Boas leituras!

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